POR ANGELA MARIA MÜLLER: Melinoe

Publicado em:

A casa estava silenciosa. Ouviu um barulho vindo da cozinha. Eram 4h35. Foi ver o que era. Perto da geladeira estava Pedrinho, seu filho de 8 anos.

– O que você está fazendo aqui, meu amor?

– Fiquei com sede e vim tomar água, mamãe. Posso ver TV? O piso estava frio e o menino, descalço.

– É muito cedo ainda, volte para cama. E, da próxima vez, ponha o chinelo, vai acabar se resfriando. Pedrinho correu de volta para a cama, enquanto ouvia a mãe falando. Meli o alcançou, cobriu e deu-lhe um beijo na testa.

– Você vai dormir também, mamãe?

– Não, querido, estou sem sono, vou ler um pouquinho. Durma bem.

Sentou-se no sofá da sala para ler quando, mais uma vez, sentiu um vazio invadir o peito. Era uma impressão horrorosa, como se estivesse parada no tempo e tudo fosse apenas uma pálida lembrança de outrora. Sombras noturnas transformavam-se em criaturas lacrimosas vestidas de preto, que caminhavam lentamente, como que em procissão. O ar, impregnado de um cheiro de cera de vela e flores invadia suas narinas e a sufocava. Percebeu que as criaturas a levavam através de uma alameda, atravessavam um grande portão de ferro, cuja inscrição não conseguia ler. Exalava o ar glacial. Reagiu. Levantou-se e foi andar pela varanda da casa até o jardim. Essas caminhadas faziam com que melhorasse. Amanheceu e a casa foi tomada pelos sons e aromas que indicavam mais um dia igual a tantos outros nos últimos meses. Barulho de chuveiro, xícaras, pratos e talheres, aroma de café, leite, pão torrado, geleias, queijo. Mesa posta, Carlos foi acordar o filho. Tinha que se apressar, já estava atrasado para o trabalho e ainda precisava passar na casa de D. Olinda. Pedrinho ficaria com a vó, hoje. Meli tentava, há semanas, conversar com o marido, mas ele não lhe dava atenção. Andava tão retraído e distante. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Absorvido pelo trabalho, saía e voltava para casa, taciturno. Só Pedrinho conseguia arrancar-lhe palavras e sorrisos. Além disso, adquirira o hábito de sair por duas horas, aos sábados, pela manhã. Nessas ocasiões, retornava com um olhar estranho.

– Papai está triste. Mas, pode deixar que cuidarei dele pra você. Ele ficará bem, mamãe. Disse, certo dia, percebendo a preocupação da mãe. Meli ficou comovida com o filho, tão pequeno e tão amadurecido. O que estaria acontecendo com Carlos? Teria deixado de amá-la. Não, isso não. Tinha certeza. Mas, como explicar esse comportamento? A indiferença dele a deixava exasperada. Sentia-se invisível. Chegara a quebrar o espelho do quarto, outro dia, esperando alguma reação e, para sua surpresa, ele se limitara a resmungar alguma coisa e a recolher os cacos. Pedrinho se assustara com o ruído, mas Carlos lhe explicou que o espelho se soltara da parede, parafusos quebrados, só isso, consertaria no dia seguinte. Mas, Pedrinho sabia que a mãe o quebrara.

– Mamãe, não adianta quebrar as coisas. O papai vai melhorar, você vai ver. Outro dia, ele falou que a amava muito e não precisava me preocupar, ficaríamos bem.

Meli não podia mais continuar assim. Preocupada com as reações do filho, sabia que ele percebia toda a situação. Tinha que descobrir a razão pela qual o marido a evitava. De alguma forma, aquela sensação de vazio que a assolava era parte do mistério. De repente, lhe ocorreu que Carlos poderia estar mantendo um caso com outra mulher. Não importa. Não aguentava mais a situação. Iria descobrir o que estava acontecendo. No sábado, depois do café, Carlos preparou-se para sair e, dessa vez, levaria o filho. Pedrinho havia manifestado interesse em acompanhá-lo e ponderou que, talvez, fosse uma boa ideia. Certamente, Meli gostaria de ver pai e filho juntos. Do mezanino, ela acompanhava a movimentação dos dois. Pedrinho passou correndo por ela e, animado, falou algo que a deixou desconcertada.

– Vamos fazer uma surpresa pra você, mamãe. Você vai adorar.

Saíram a pé. Meli os seguiu. Mas, quando se aproximou da rua, a angústia brotou no peito. As criaturas obscuras, o choro, a tristeza, tudo a atingiu como um flash. Respirou fundo algumas vezes, o frio súbito se apossou dela. Continuou caminhando pela calçada. As imagens desapareceram. Agora, via seus dois amores dobrando a esquina. Alcançou-os, porém, manteve uma certa distância. Entraram numa floricultura, cinco minutos depois, saíram de lá com um buquê de flores. Estremeceu. Andaram por mais duas quadras e pararam. Carlos apontou para o alto do portão de ferro e disse alguma coisa para o filho. Entraram. Meli conhecia o lugar, mas por que razão Carlos levaria o filho ali? A angústia ganhava força. Seguiu-os pela alameda, foi invadida por um déjà-vu. A certa altura, os dois enveredaram pela grama e ficaram próximos a um carvalho. A atenção deles estava em alguma coisa no chão. Meli aproximou-se dos dois. A angústia transformava-se em tristeza. Viu a lápide. Nisso, Pedrinho lhe perguntou:

– Gostou da surpresa, mamãe? Pedi ao papai para vir hoje e lhe trazer flores.

Não conteve as lágrimas ao ler o nome escrito na lápide: “Melinoe Suez, amada esposa e mãe, descanse em paz”.

 

 

Compartilhe nas redes sociais

Mais Lidas

Leia também
Notícias

Às 20h15 da noite desta terça-feira (17), Sinos atinge o nível normal em São Leopoldo

2,50 metros. É o nível registrado do Rio dos...

Projeto 40nós, da fotógrafa Mariana Jesus, promove roda de conversa sobre vivências LGBTQIAPN+

O Projeto 40nós realizou uma roda de conversa aberta...

Alunos de Gastronomia da Unisinos promovem evento no campus de São Leopoldo nesta quarta-feira (18)

Nesta quarta-feira (18), a partir das 15h30, no pergolado...