Essa frase nunca foi apenas um slogan para mim. Ela carrega a responsabilidade e a esperança. Cada vez que a repito, lembro dos rostos, das vozes e das histórias das muitas crianças e adolescentes que escutei ao longo desses mais de 25 anos de atuação. Histórias que marcaram minha trajetória pessoal e profissional. Histórias que me emocionam, que me revoltam, e que, acima de tudo, me mobilizam.
Neste Maio Laranja, fazemos mais uma vez esse chamado à mobilização coletiva. O 18 de Maio é Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes completa 25 anos em 2025. Um marco de resistência e denúncia, instituído pela Lei Federal 9.970/2000, e que precisa ser lembrado com urgência e compromisso.
Esse marco legal, instituído pela Lei Federal 9.970/2000, nasceu da dor de uma tragédia, mas também da coragem de transformar o luto em ação. Para nós, ele simboliza uma luta que atravessa décadas e que exige de cada pessoa uma postura ativa diante da violência que assombra tantos lares e comunidades.
É impossível ignorar os dados: eles são duros, revoltantes e carregados de dor. Revelam um país onde meninas e meninos continuam sendo silenciados pela negligência, pela omissão e, muitas vezes, pela própria estrutura social que deveria protegê-los. Especialmente nas periferias e comunidades vulnerabilizadas, vemos crescer a exposição ao risco, à violência sexual e ao abandono. Isso nos fere. Nos indigna. E, mais do que nunca, nos move.
A exploração sexual, ainda tão invisível, não acontece só em “lugares distantes” ou nas ruas. Ela se esconde em quartos trancados, em espaços privados, entre conhecidos, muitas vezes com a conivência do silêncio e do medo. Saber que a maioria das vítimas são meninas negras, com menos de 13 anos, violentadas dentro de suas próprias casas, por pessoas próximas, é devastador. Como sociedade, precisamos olhar isso nos olhos e nos perguntar: o que estamos fazendo para impedir
que isso continue?
A cada número de um anuário, há uma história interrompida. Uma infância ferida. Uma vida marcada. E nós sentimos cada uma delas. O PROAME CEDECA não atua apenas com estatísticas, mas com pessoas reais, crianças e adolescentes que chegam até nós com seus medos, dores e cicatrizes. É com elas que aprendemos todos os dias sobre a importância do acolhimento verdadeiro, da escuta atenta e da construção de vínculos que possam, aos poucos, reconstruir a confiança no mundo.
Lembro de cada história que chegou até nós, de cada criança e adolescente que não conseguia confiar em mais ninguém, de cada silêncio que dizia muito mais do que qualquer palavra. Nenhuma formação técnica nos prepara para o impacto de escutar essas histórias. Mas, o que nos mantém firme é a certeza de que estar ali, disponível para ouvir, acolher, proteger e defender, e isso pode mudar vidas e, muitas vezes, salvá-las.
Lembro de um menino de 12 anos, com um olhar assustado. Quando chegou no grupo, ele mal falava, brigava com os colegas, não tinha amigos. Sentava no canto, com a cabeça baixa, desenhando figuras que ninguém entendia muito bem.
Aos poucos, foi se aproximando. Me olhava muito e parecia que tinha algo que queria me falar. Um dia me perguntou o por que eu sorria para ele? Por que eu gostava dele?
Eu respondi que ele era especial, muito importante para mim e que ele podia confiar em mim. Neste dia ele me olhou e deu um leve sorriso. No dia seguinte, depois de uma roda de conversa sobre confiança, ele pediu para ficar um pouco mais depois da atividade. Com a voz trêmula, me disse rapidamente e logo se calou: “Eu não quero mais ir na casa do meu avô. Ele faz coisas estranhas comigo”.
E logo veio o silêncio duro de escutar. Fiquei ao seu lado, acolhi com calma, sem perguntas invasivas, sem julgamentos, sem curiosidades, só me coloquei disponível para ouvi-lo. Disse que ele fez certo em me contar. Ele começou a chorar e me contou o que acontecia toda vez que ia na casa do avô. Disse que achava que a culpa era dele, que nunca tinha contado porque tinha medo de ninguém acreditar.
Por vezes as lágrimas quase caíram no meu rosto, o sentimento de impotência, de raiva, mas segui firme e acolhendo cada palavra que ele dizia.
Depois que ele contou eu comuniquei os passos que teria que dar para poder ajudá-lo e protegê-lo.
Fiz os encaminhamentos necessários junto à rede de proteção.
O caso foi encaminhado e o autor afastado da família.
Hoje, ele ainda está em acompanhamento. Tem dias bons, outros difíceis. Mas agora ele sabe que o que aconteceu não foi culpa dele. Ele sabe que foi corajoso. E que tem direito a crescer sem medo.
“Sora, tu é a única pessoa que gosta e acredita em mim!”
Essa frase que ele me disse, ecoa dentro de mim, me dando força para lutar todos os dias para que nenhuma criança e adolescente seja vítima de violência.
Nossa atuação ultrapassa os muros das instituições. Estamos lado a lado com escolas, professores, famílias, comunidades. A escola, quando fortalecida, é um espaço de escuta, de proteção e de denúncia. Ela pode ser a diferença entre o silêncio e o recomeço. Por isso, insistimos: falar é um ato de coragem e também de proteção.
Neste 18 de Maio, nós não apenas reafirmamos nosso compromisso, nós o gritamos. Porque a dor de cada criança agredida é também nossa dor. Porque não vamos aceitar naturalizar nenhuma forma de violência. Porque queremos que toda criança cresça cercada de amor, segurança e respeito. E porque sabemos que a mudança só é possível se ela for coletiva.
Também oferecemos atendimento psicossocial para crianças, adolescentes e famílias, muitos deles marcados por traumas profundos. Cada história que escutamos nos lembra que o acolhimento não é um favor: é um direito. Mas, sozinhos, não damos conta. É preciso que o Estado amplie, qualifique e garanta os serviços especializados. Que haja investimento real em políticas públicas que rompam com os ciclos de violência.
Por fim, deixo um apelo: não se cale. Denuncie. Proteja. Se você souber de algum caso de abuso ou exploração sexual contra crianças e adolescentes, ligue para o Disque 100. A ligação é anônima e funciona 24 horas.
O silêncio também pode machucar.
Micheli Duarte é diretora do Proame/Cedeca