Um movimento literário não surge do acaso nem da vontade de um indivíduo. No Brasil, o Romantismo despontou vinculado a um projeto de criação de uma consciência e de uma literatura nacional, principalmente através de uma de suas vertentes, o indianismo. Expressão original do nacionalismo brasileiro, o indianismo, através da exaltação da pátria, da natureza e de uma representação identitária simbólica e irreal, forjada através da idealização do nativo da terra, contribuiu para a afirmação de valores ideológicos conservadores os quais omitiam e desviavam das questões sociais da época. Nesse período, o Brasil alicerçava-se nas colunas de sustentação do poder agrário colonial: latifúndios, escravidão, exploração de recursos naturais para exportação de matérias-primas, regime monárquico, religiosidade hegemônica conivente com esse sistema. O indianismo desconsiderou as etnias afrodescendentes e suas culturas na formação dessa identidade nacional. Instrumento de uma sociedade que se almejava “civilizada”, mitificou os povos nativos, vítimas de genocídio, e desprezou os povos afrodescendentes, vítimas da escravização.
O próprio José de Alencar, brilhante escritor, foi um político conservador, grande proprietário rural, monarquista e escravocrata. Aderiu a esse projeto, e as principais obras da prosa romântica indianista foram seus romances “O guarani”, “Iracema” e “Ubirajara”.
Em “O guarani”, o protagonista Peri representa esse modelo de herói nacional idealizado e bastante caricato. O “bom selvagem” Peri converte-se ao catolicismo, fala em língua portuguesa e, voluntariamente, serve a uma família de colonizadores. Posteriormente, essas distorções alimentaram muitos debates e críticas à obra de Alencar. Entretanto, tais discussões não impedem que “O guarani” permaneça reconhecido como um marco em nossa Literatura, principalmente por sua importância na inovação do código linguístico literário brasileiro.
É comum a associação do título da obra, “O guarani”, à personagem Peri, esse indígena aculturado. Note-se, contudo, que a personagem é da tribo goitacás. O termo “guarani” refere-se, na realidade, às diversas variantes de línguas indígenas da família ou tronco linguístico tupi-guarani. Assim, o título da obra destaca e enaltece essa variedade linguística.
Em seu romance, José de Alencar rompeu alguns paradigmas literários. Afastou a linguagem literária do padrão erudito e a aproximou da língua falada no Brasil e, principalmente, apresentou e incorporou muitos vocábulos do vasto repertório lexical e semântico das línguas indígenas ao cânone literário.
Viu-se, antes, que Peri assimila a cultura e a língua dos colonizadores. Ressalte-se, no entanto, que a obra de Alencar também apresenta um outro caminho inverso. A língua portuguesa, no Brasil, assimilou as línguas indígenas. Diferentemente de Peri, os elementos lexicais das variantes linguísticas dos povos originários não se descaracterizaram, não se corromperam, não perderam sua natureza ao contato com a língua dos invasores. No português-brasileiro, o “dominador” rendeu-se ao “dominado”.
Assim, a análise do código linguístico no romance permite apontar a fundação de uma linguagem literária brasileira, filha e herdeira das línguas portuguesa e guaranis. O título e a obra “O guarani” representam essa proposta, registram sua certidão de nascimento. Reconheça-se, nesse aspecto, o valor da obra.