POR ELENILTO SALDANHA DAMASCENO: Famílias seculares em alegorias literárias

12 de setembro de 2022 - 10:54
Por Elenilto Saldanha Damasceno - Professor, escritor e jornalista

No ano em que nasci (1967), o escritor colombiano Gabriel García Márquez publicou uma obra-prima do denominado Realismo fantástico, uma representação do panorama histórico-social da realidade latino-americana na saga secular da família Buendía. Trata-se do romance “Cem anos de solidão”.

Quase oitenta anos antes (1888), o escritor português José Maria Eça de Queiroz havia publicado uma obra-prima do Realismo, uma representação do panorama histórico-social da então realidade portuguesa nas gerações de uma família secular. Trata-se do romance “Os Maias”, título que poderia ser parafraseado como “Cem anos de estagnação”.

Aparentemente, a relação entre as duas obras pode apresentar-se como um inusitado paralelo entre literaturas de épocas e lugares distantes. No entanto, essa aproximação é possível e viável, pois a Literatura dos dois últimos séculos tem esses aspectos de universalidade e de relativização das representações de tempo e espaço, sem a imposição de fronteiras ou limites rígidos a esses elementos composicionais nas narrativas.

Em “Os Maias”, Eça de Queiroz retrata seu tempo e sua nação. Através da história de quatro gerações de uma tradicional família aristocrática, apresenta uma alegoria da nação portuguesa no século XIX. No apogeu do século racionalista, a teoria científica do determinismo elucidava a herança genética repassada de pais para filhos, caracterizada não só pela transmissão de aspectos físicos, mas também pela predisposição ou condicionamento a comportamentos específicos. Na Literatura da época, tanto o Realismo quanto o Naturalismo absorveram e aplicaram tais pressupostos científicos.

Essas heranças poderiam constituir bênçãos ou maldições, molas propulsoras para o sucesso ou laços para a ruína. Semelhantemente a essas transmissões genéticas, a herança histórica e cultural de um povo também pode determinar o destino de uma nação. Em seu romance, Eça de Queiroz apresenta paralelos e contrastes entre família e nação. A família, na obra, representa uma impressionante alegoria da nação portuguesa. Esse tema é bem interessante; além disso, sua análise, na obra, também estabelece relações com a formação histórico-social brasileira.

Todavia, por ora, é o panorama histórico-social da realidade brasileira que parece reproduzir uma narrativa literária do gênero farsa, ou do gênero “non sense”, na qual uma família se apresenta como modelar, mas representa, alegoricamente, uma nação na qual a hipocrisia passou a reinar sem constrangimentos. Não é à toa que esse “modelo” ativou tanta potência destrutiva de laços e afetos em inúmeras famílias. É lamentável e é absurdo, mas essa história já foi imposta e tem sido aceita por muitas pessoas. Seu título? “Cem anos de sigilo”.

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